Um copo fumegante alcançou o campo de visão de Miguel.
-Você precisa de um café.
Joelma continuava linda, mesmo com os cabelos desgrenhados, a roupa amarrotada e o rosto pálido e cansado.
Todos estavam exaustos.
Apesar dos protestos, conseguiram fazer com que sua mãe fosse descansar, com a promessa de um telefonema para qualquer noticia.
A declaração ao delegado sobre o ocorrido não ajudou muito. Tudo acontecera rápido demais. Tudo muito trágico e dolorosamente familiar.
-Sei que pode parecer um pouco insensível – disse Joelma, inter-rompendo seus pensamentos – Mas, não consigo pensar em nada, nem questionar e nem saber a razão.
Dava pra perceber que ela estava sofrendo.
-É horrível pensar que tem alguém que odeia tanto meu marido ao ponto de querer matá-lo.
Sentiu-se culpado por querer sentir o toque e a pele da mulher do irmão para o qual agora teria uma eterna dívida de gratidão.
Quem estaria por trás disso?
Pelo q
Miguel!A voz de sua mãe chegou aos seus ouvidos.-Sim, mãe?-Achou seu irmão?-Acho que sim – respondeu estreitando os olhos à procura do desertor.-Então vá chamá-lo!Zeca balançava tranquilamente sobre a rede amarrada em dois troncos de figueira.Não abriu os olhos quando ouviu o som de passos se aproximando.-Você conseguiu me achar.-É – sentou-se no chão apoiando as costas em uma das árvores – Não deu pra te dar cobertura por muito mais tempo. Você vai ter que ir nesse evento.-É, parece que sim. Será que não haveria uma maneira de mamãe me liberar desse tormento? Tenho tantas coisas para pen-sar, resolver... Por exemplo, já sei o que vou fazer pelo resto da vida: vou me dedicar à música.Miguel riu.-Assim como você queria ser astrônomo!-Confesso que foi apenas um sonho. Mas desta vez, vou me dedicar à arte das melodias. Mudarei meu nome para algo extravagante e totalmente original.José Carl
Já passavam das duas da manhã e a sala de espera do hospital, agora silenciosa, abrigava parentes aflitos e angustiados a espera de noticias.Miguel e Joelma ainda estavam inclusos nessa categoria.Haviam passado mais de 48 horas e nenhuma informação.Joelma dormia apoiada em seu ombro vencida pela exaustão. Ele mantinha-se acordado.Seu desejo o mantinha acordado.Estava queimando por dentro.-Meu Deus, isso é loucura! Meu irmão entre a vida e a morte e eu tendo pensamentos eróticos com a mulher dele!Miguel afastou as mechas ainda úmidas do banho, olhando- se no retrovisor.-Não se preocupe cara. Tá bonito. Não é a toa que se parece comigo!Ao contrário do irmão, Zeca não teve tanto esmero ao vestir-se para a festa.Miguel fôra bastante cuidadoso ao escolher cada detalhe do que vestiria, afinal de contas mesmo sendo gêmeo, isso não sig-nificava que ele possuía o charme do irmão.Mesmo assim, o fato de Zec
A festa transcorreu bem, sem nenhum incidente exceto o fato de Zeca ter sumido por duas horas para retornar com um sorriso largo e os olhos brilhantes.-Ih, já vi que viu um passarinho verde!-Verde não, meu irmão. Azul, amarelo, vermelho, bicolor, tricolor... Todas as cores possíveis.“É mulher” – pensou Miguel.Seu irmão tinha uma facilidade para se apaixonar surpreendente.-Quem é dessa vez?Ofereceu seu saquinho de amendoins onde o irmão se serviu de alguns grãos e começaram a caminhar.-Por acaso seria a musa para suas inspirações musicais?-Você é muito esperto!-Sou seu irmão gêmeo, lembra? Posso ler seus pensamentos.Mais tarde, deitados em suas respectivas camas, os irmãos ain-da conversavam.Miguel ficou sabendo que Zeca havia marcado um encontro para a próxima sexta, dali a cinco dias, onde iria ser comemorado o aniversário de um vereador da cidade.Porém, o mais importante, Zeca não havia contado.
Miguel ouviu alguém pigarrear e levantou os olhos de uma revista que pegara para distrair a mente.Tocou levemente no braço de Joelma.Esta despertou de imediato.-O senhor José Carlos já foi operado. As balas foram retiradas e apesar de uma delas ter perfurado o abdômen, não atingiram nenhum órgão vital. A cirurgia foi muito delicada, mas ele resistiu bem. Amanhã ele já deve poder retornar ao hospital da cidade de Folhagem.-Graças a Deus! Podemos vê-lo doutor?-Infelizmente não. Ele está agora em observação. Vamos ver como ele reage as primeiras 12 horas.Dito isto, o médico afastou-se.-O doutor está certo –tentou consolar Miguel – Ele está muito fraco e precisamos evitar qualquer tipo de emoção. Ele tem que se recuperar. O importante é que o pior já passou.Joelma assentiu e se jogou em uma cadeira próxima.-Deve estar sendo difícil pra você também não é?Miguel sentiu aquele frio na barriga.-Sim. Muito. – murmur
Porém, antes de ir embora, tinha que obter respostas para algumas questões não respondidas.Quem tentou lhe matar? Por que tentaram lhe matar? Alguém tinha muito que explicar.Miguel nunca fôra violento, mas era um homem de ação. Iria até o fundo para descobrir o que estava acontecendo na outrora pacifica Folhagem.Visitaria o delegado Aníbal assim que saísse do hospital. Na verdade, antes disso, precisava dormir. Talvez algumas horas de sono ajudassem a clarear sua mente que se encontrava congestionada de perguntas.Porém, como dormir frente à tamanha agitação?Como locomover-se atrás de respostas se agora tinha que andar com dois policiais em seus calcanhares a fazer-lhe proteção?Afinal, ele ainda era o principal alvo. O assassino, fosse quem fosse, não mirou em Zeca. O irmão que, heroicamente, jogou-se frente à bala.A lembrança do momento exato do sacrifício do irmão ficara em sua mente como um vulto confuso.Aquele crucial moment
A mãe se mostrou surpresa.Miguel se perguntou se tamanho espanto era por que a pergunta soara absurda ou se era pelo fato dele ter achado estranho tão banal detalhe.-Não sei por que você está me fazendo uma pergunta tão boba.-Ora mãe! Pare com isso. Não sou mais nenhuma criança. Do jeito que Zeca era vaidoso com os cabelos por que ele haveria de agredir seu próprio senso estético raspando a cabeça? Está na cara de que algo está errado e vocês estão me escondendo isso.-O problema não sou eu. Por mim eu tinha te contado, mas Zeca preferiu contar ele mesmo a você.-Contar o que?-Ele ia te dizer naquela manhã em que atiraram em você.Miguel começava a ficar impaciente com toda aquela enrolação de sua mãe.Procurou controlar-se. Sabia que a mãe era assim mesmo: para contar uma história dava voltas e mais voltas. Respirou fundo tentando se acalmar.-Ele ia me dizer o que?-Acho melhor esperar ele acordar pra te contar. Zeca
Miguel sentou-se.De repente estava tudo claro em sua cabeça. Que outro motivo haveria para Zeca, um homem tão vaidoso ter raspado todo o cabelo?-Toda a cidade já sabia, mas mesmo assim seu irmão não queria que nós lhe contássemos. Ele fez todo mundo prometer ficar em silêncio sobre o assunto. Ele queria te contar.Câncer terminal! Era difícil digerir aquela noticia.Mesmo que seu irmão não tivesse sido vítima daquela bala, iria falecer do mesmo jeito.Ao saber da noticia, tudo ficara repentinamente claro. O detalhe que lhe incomodava não era único. Eram vários. Zeca estava pálido e magro.Mais uma vez o remorso tomava conta de seu ser. Estava tão preocupado com seus pensamentos impróprios acerca de Joelma que nem notara a situação do irmão.Sentia-se a pior das criaturas.Em meio ao remorso e a tristeza, um pensamento acenava distante em sua cabeça. Existia um motivo para que Joelma o tenha fascinado de forma tão imediata.Pens
O dia do aniversário do vereador havia finalmente chegado e Miguel ainda não tinha conseguido desco-brir quem era a tal musa inspiradora de Zeca.Não que fosse algo para se estranhar, pois Zeca mudava de idéia o tempo todo sobre a profissão que queria seguir quando adulto e trocava de paixões como trocava de cuecas.Mas sempre era divertido ficar tentando descobrir qual das me-nininhas da cidade era a paixão da vez do irmão.E sempre era fácil descobrir.A garota que Zeca mais cercasse durante a semana era a felizarda.Só que dessa vez, nenhuma das meninas da cidade estava conseguindo atrair a atenção dele.-Isso é muito estranhoMiguel tinha o milenar defeito do excesso de curiosidade. A idéia de não saber quem seria a misteriosa pretendente do ir-mão lhe causava urticárias.Por esse motivo, não desgrudou do irmão durante a festa.Inventando mil desculpas, Miguel fez de tudo para estar ao seu lado quando ele fosse encontrar com