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# capítulo 2

                                               A lha Acima Do Céu

- Quando eu pulei da janela a fugir da avó, corri para a avenida. Andava atordoado pelas ruas, os carros apitavam para que eu saísse da estrada, um homem alto, vestido de preto pegou-me pelo ombro e, levantando as mãos, fez sinal de paz para os condutores, e disse:                                                                                 

- Desculpem-me, senhores. O meu filho está sempre a causar problemas desses, ele não se sente muito bem.

Então ele levou-me para um carro preto, abriu a porta de trás para que eu entrasse e foi-se sentar à frente. Quem estava ao volante era uma mulher, que, logo entramos, pôs o carro em movimento. Ela não era muito bonita, mas estava tão bem arranjada que até dava a impressão de ser bela. Tinha um vestido azul, muito curto, que lhe evidenciava as pernas, já um pouco flácidas, devia ter já idade avançada.           

O carro tinha janelas com vidros escuros.

Logo que entrei a mulher disse:                                                     

- Este deve estar desaparecido, seguimo-lo por alguns metros, ninguém está à sua procura.

O homem comentou, gargalhando: Assim poupa-nos muito trabalho.

Enquanto ela conduzia, o homem apalpava-lhe as pernas e os dois se beijavam, ignorando completamente a minha presença.

Já tínhamos passado a autoestrada, estávamos há quase uma hora a viajar. Olhando para trás a mulher me encarou e depois passou os olhos pelo meu joelho ferido, fazendo uma cara de dúvida. De novo olhou para a frente e desceu o retrovisor enquanto cutucava o homem para que ele olha-se para a minha imagem refletida no espelho. Nossos olhares se cruzaram.

E de repente já não estávamos no carro, estávamos num lugar estranho, parecia um grande castelo. À porta do edifício estavam duas filas de crianças, em lados opostos, no meio um tapete vermelho por onde eu andei até chegar ao castelo.

Olhei para trás e só vi nuvens, estava eu numa ilhota acima do céu.

As crianças tinham todas a mesma roupa, estavam todas de túnica branca.

Não resisti e interrompi Sander:                                                 

- Não vais me dizer que eles tinham asas e cinetes, pois então estiveste no céu?

  - Não, nada disso! Eles não eram anjos e nem estive no céu. Estive numa pequena ilha acima do céu, que só tinha um grande castelo onde as crianças eram escravizadas, elas tinham sido roubadas de suas famílias, e eram humilhadas e ridicularizadas a todo o momento.

Retomando, quando cheguei perto, eles me abraçaram, me beijaram e me levaram para dentro. As crianças estavam a trabalhar sempre, e nunca paravam. Elas serviram o nosso almoço (a comida era só guloseimas, tudo que sempre quis comer) e enquanto comíamos, eles me anunciaram que eu seria batizado no dia seguinte e que iria me juntar às outras crianças.

O estranho é que no meio de todas aquelas crianças de vestes brancas estava um rapaz que tinha uma capa castanha e estava descalço.

Então perguntei ao casal: Porquê só aquele rapaz não usa uma túnica branca?

A mulher então respondeu:

- Qual rapaz? Não há ninguém aqui para além de nós.

Exclamei bem alto:

- Está um rapaz atrás de si, minha senhora.

Ela riu-se e disse: É melhor ires descansar, assim amanhã estarás pronto para o batizado.                                             

Eles chamaram as crianças que me colocaram sobre uma cama móvel e levaram-me até o meu quarto.

Quando eu encostei a cabeça na cama o menino diferente apareceu outra vez à minha frente.

- Liberte-nos! Liberte-nos!

Respondi-lhe:

- Libertar-vos do quê?

- Liberte-nos, eles são assassinos, tu és a nossa única esperança. Por favor, liberte-nos.

- Mas tu não existes, tu não existes, és coisa da minha cabeça, tal como me disseram ao almoço.

- Foi o que eles disseram? Então venha comigo ver quem eles são de verdade.

E acrescentou: São os Miranda. A mulher se chama Lucy, é a chefe, já o homem é um pau mandado, o Juca.

Ele pegou numa das minhas mãos e fomos até a cozinha, depois entramos por uma porta onde se lia “Proibida a entrada, exceto ao casal Miranda”

Quando entrei lá fiquei chocado. Havia ossadas de crianças por toda a parte. As paredes da sala, de cor branca, tinham manchas vermelhas que pareciam sangue. Fiquei apavorado.

- Sabes, isso é que é o batismo.

- O quê, na verdade eles só querem me matar?

- Sim. Vês como és esperto? E só tu podes salvar aquelas crianças e levá-las de volta para as suas casas.

- Mas como é que faço isso?

- Eu sei como vais fazer. Vou-te explicar, mas terás que fazer tal como eu mandei. No dia seguinte, à hora do ritual, eu já tinha a armadilha preparada para a noite. Lancei-lhes terra para os olhos e eles foram bandoleando, então com a ajuda dos miúdos amarrei-os um a um no selim de um cavalo que os arrastou pela ilhota até desaparecerem no meio da poeira.

As crianças ficaram muito felizes. Finalmente estavam livres! Acompanhei cada uma delas até a sua respetiva casa, onde foram recebidos pelos seus pais.

O rapaz que me pediu ajuda simplesmente desapareceu.

E eu vim parar aqui! Queria muito rever os meus pais também, mas parece que não terei a mesma sorte que eles.

Eu estava com um sorriso de orelha a orelha, afinal eu tinha acabado que ouvir uma história muito linda e tinha um herói à minha frente. Mas queria saber ainda mais sobre ele, tudo, na verdade, e perguntei:                                            

- Então, o que é feito dos teus pais?

Ele respondeu-me:

- Não sei onde eles estão, simplesmente desapareceram.

                       

                                                A Busca Pelo Tesouro

Era noite, eu estava na cozinha conversando com o meu pai quando o seu telefone tocou. Ele foi atender e depois subiu para ir ter com a mãe.

Eles iam sair naquela noite, iam a uma festa na casa de um grande amigo do pai, comemorava-se o Dia das Bruxas.

Interrompi Sander novamente, comentando:

- Então, foi ontem, sábado à noite, que eles sumiram?

Ele respondeu:

 - Não, foi há uns dias, só não me lembro quando.

E eu novamente:

 - Pois, mas o Dia das Bruxas foi ontem à noite.

Ele me encarou zangado, então eu concordei e disse:

 - Está bem, seja como for, continue.

Sim, voltando ao assunto, eu fui para o quarto dos pais, fiquei atrás da porta e ouvi-os rindo, empurrei um bocado a porta e espreitei. O pai estava colocando uma jóia no pescoço da mãe, eles foram para diante do espelho, foi onde os nossos olhares se encontraram, eles estavam sorrindo.                                               

E de repente já estávamos na cozinha, de novo, como que por magia. Estávamos os três à mesa a tomar o pequeno-almoço, mas eles brigavam, discutindo em voz alta.

E a mãe gritou alto:                                                                        

- Eu não vou desistir da minha carreira, não agora que a minha agência de moda está na melhor fase, e estou prestes a organizar o maior desfile de sempre. Como é que foste capaz? A empresa vai falir em menos de um mês e só agora me deixas saber. Como foste capaz de chegar a este ponto, Filipe?

O pai então respondeu: 

- Eu não tive culpa, meu pai deixou muitas dívidas, mais cedo ou mais tarde isto poderia acontecer. Eu não sei o que fazer!

O pai não sabia o que fazer, mas eu sabia. Enquanto eles discutiam, trocando palavras feias, tentei chamar a atenção dos dois, mas nenhum deles me deu a mínima, então bati a colher no copo e então eles se viraram para mim, como se há muito tempo não me viam, e fez-se silêncio.

- Posso falar uma coisa, mãe, pai? – perguntei, olhando para um e depois para o outro. 

E a resposta não se fez esperar, responderam ao mesmo tempo:

- Agora não, filho.                                                     

O pai retorquiu:

- Estamos a ter uma conversa de adultos.

Levantou-se e disse:

- Vem comigo Helenice, continuaremos esta conversa dentro do carro, depois deixo-te no trabalho.

E fiquei sozinho em casa, aos cuidados de uma ama a quem a mãe deixou ordens para que ela olhasse por mim enquanto estavam fora. Mal sabiam eles que eu tinha a solução para os seus problemas. Eu tinha encontrado no sótão uma carta do avô destinada ao pai. A carta tinha uma mensagem que os agradaria muito.

Aguardei até a noite. Quando voltaram, entraram para o seu quarto, corri até lá e bati à porta, os dois já se tinham deitado.

A mãe então disse que eu podia entrar.

Entrei e fiquei um bocado envergonhado, quase nunca eles tinham tempo para mim, vivíamos na mesma casa mas quase não os via, não estava acostumado a lhes falar.

Mas tinha que o fazer, então quebrei o silêncio, dizendo:

- Pai, mãe, eu tenho uma boa notícia para os dois.

- Desembucha logo menino que já estou com sono.

- É que há uns dias eu fui brincar ao sótão e achei uma carta muito importante.                                                 

- É uma carta para ti, pai, o avô deixou-te um grande baú, cheio de jóias e outros objetos bem valiosos. Ele também deixou um mapa que mostra como se chega lá, diz que fica nos confins do país, para além das montanhas, num lugar que quase ninguém frequenta.

O pai pediu então para ver a carta e quando terminou de lê-lo, em voz alta, ele e a mãe deram um grito de contentamento e abraçaram-se.

A mãe, eufórica, abrindo os braços exclamou:                                                                                        

- Ainda bem que vou conseguir financiamento para o meu desfile.

- E eu não vou ter que vender a casa e todos os meus bens e estou ainda mas rico.

Eles estavam tão entretidos a conversar. Dirige-me para a porta, mas o pai chamou-me:                                                                               

- Vá dormir filho, amanhã bem cedo iremos viajar, eu vou buscar o meu tesouro.

Fui para o meu quarto. No dia seguinte os pais comentaram que não tinham conseguido dormir por causa da ansiedade. Fizemo-nos à estrada, íamos aos confins do país.

Estávamos a viajar havia quatro horas, encontrávamo-nos a poucos metros do destino, apareceu uma mulher no meio da estrada, estava suja, toda malvestida, era horrível, parecia ter saído de um filme de terror. Gritei para que o pai parasse o carro, mas simplesmente foi para cima dela, e continuou dirigindo.

Eu então disse:

- Ias bater numa mulher, mas ela desapareceu do nada.

Mãe:

- Deixa-te disso, menino, deita-te e descansa, não deves ter dormido.

O pai olhou para mim e simples riu.

Quando finalmente chegámos, já tinha o traseiro dolorido de tanto sentar-me, a mulher apareceu de novo ao lado do meu pai e eu voltei a gritar:          

- Pai, olha, é aquela mulher outra vez! 

- O que estás a dizer?! É melhor ficares quieto, menino – respondeu a mãe.

O lugar era íngreme, o pai nem hesitou em me perguntar se eu queria acompanhá-lo. Mas eu estava entretido com o meu videogame e não gostava muito de estar ao ar livre e não era muito aventureiro, o pó faziam-me mal...

O pai perguntou:

- Vais comigo buscar o tesouro?

 A mãe então respondeu:

 - Vai tu, afinal foste tu quem levou a empresa à falência e eu não vou estragar os meus lindos sapatos neste lugar.

O pai, sem alternativas, decidiu ir sozinho. Ele trepou às árvores, subiu montanhas… Decorreu muito tempo até que voltasse.                                          

Enquanto isso a mãe se olhava ao espelho, às vezes entrava no chat para falar com suas amigas. Eu estava entediado.  

Quando o pai regressou já era noite, tinha a mochila cheia.

Então a mãe perguntou:

- Por que demoraste tanto tempo?

O pai sorriu, entrou no carro e abriu a mochila. Estava cheia de jóias, a mãe ficou encantada e disse:

- Eu nunca vi tanto ouro e tantas pedras preciosas na minha vida!

O pai então afirmou:

- Conseguimos, vai tudo ficar bem. Foi bem difícil chegar lá. Depois que subi todas aquelas montanhas, cheguei do outro lado da colina. É um lugar cheio de verde, maravilhoso, paradisíaco, vegetação densa e virgem. Segui o mapa e cheguei a uma cachoeira. A água do lago era cristalina. Então fiquei bem em frente à cachoeira e a água, que caía como um lençol, se abriu como se me convidasse a entrar, e assim fiz, e entrei numa caverna. Vi uma mesa, duas cadeiras. Ao fundo, em cima de uma cama estava um corpo em avançado estado de decomposição. E, mesmo ao lado, estava um baú. Então, apesar do cheiro nauseabundo que inundava a gruta, abri-o, peguei em todas as pedras preciosas e jóias, tudo quanto pude colocar na mochila. Foi incrível. Tirei várias fotos, vou mostra-vos já.                                         

O pai ligou o telemóvel, mas não encontrou nenhuma foto da gruta.

E preocupado disse:

- Eu tirei várias fotos, mas todas desapareceram misteriosamente do meu telefone, é uma pena.

Então voltamos para casa e eu acabei adormecendo no carro. Quando já era de madrugada, acordei. Eu estava sozinho dentro do carro, alguém acariciava os meus cabelos. Virei a cara para ver quem era, para meu espanto era aquela mulher que eu tinha visto antes, fiquei totalmente assustado.

Quando eu ia gritar ela me tapou a boca. E disse:    

 - Acalma-te, menino, não precisas ter medo, só estou aqui para te proteger. Não vês que aqueles dois inúteis a quem chamas de pai e mãe te esqueceram no carro. Eles não te amam, eles não te ligam nenhuma.

Ela então me abraçou e falou outra vez:                                                         

- Eu vim te salvar Sander, vim te salvar, querido. Eles não são bons pais para ti, vou-te salvar.                                                                                                   

- Vi como eles te tratam, é como se tu não existisses. Mostraste-lhes onde encontrar o tesouro e eles nem te agradeceram, és como um enfeite na vida deles.

Eu, então, como que confirmando, disse:

- Sinto-me só a todo momento.                                             

Ela então sugeriu:

- Vamos fazer assim. Teus pais gostam tanto deste carro. Dou-te uma faca e vais destruí-lo como vingança por eles te terem esquecido aqui. Depois disso com certeza vão prestar mais atenção em ti!

E assim fiz, eu estava enervado, não pensei duas vezes. A mulher foi embora, e eu voltei a dormir.

Quando amanheceu os meus pais levantaram-se e foram tomar o pequeno-almoço. Quando se lembraram de mim, os dois correram até ao carro. A mãe chegou primeiro, tirou-me do carro e me beijou. Levaram-me então para dentro de casa.

Depois de tomarem o pequeno-almoço saíram. Fui espreitar à janela. Vi-os entrar no carro que, de repente, foi sugado para o espaço sideral.

Fiquei à espera que eles voltassem e nada, eu não devia ter dado ouvidos àquela mulher.

Sander ficou triste depois de me contar isso, então eu disse:                                                                         

- Que história mais triste.

Depois perguntei:

- E nunca mais soubeste nada deles?                                         

- Foi como se eles tivessem sido sugados pelo espaço.

- Deve ser muito chato quando os pais não te dão atenção.

- É mesmo chato, mas eu voltei a encontrá-los. A propósito, esta zona onde vives como é que se chama?

Respondi-lhe:

- Na verdade, não sei te dizer. Nunca pus os pés fora daqui, portanto não te posso ajudar. Meu pai não me deixa sair. Ele diz que o mundo lá fora é muito perigoso.

- E nunca tiveste vontade de fugir daqui?

Mostrei-lhe uma grande cicatriz que ganhei quando tentei pular o portão. E confessei-lhe: - Desde então nunca mais pensei em sair daqui. E aqui tenho tudo o que preciso.

                                                          A perseguição

- Então, o que fizeste depois dos teus pais terem desaparecido? – perguntei ao Sander.

- Eu fiquei sozinho, subi para o meu quarto, fui me ver de novo ao espelho e, pela segunda vez, vi aquela mulher. Ela era bem diferente, muito alta, também muito magra, e cuidava de um bebé. O estranho é que o bebé se parece muito comigo naquela idade. Ela recebeu da criança uma caixa abriu-a e de lá retirou algumas pedras preciosas e diamantes cor de rosa e um colar. Ela beijava muito o bebé e ele parecia gostar muito dela, tinham muita afeto um pelo outro. Estavam num quarto que se parece com um dos da minha casa, aquele em que dormiam as amas que a mãe contratava. Atualmente ela já não as contrata e sempre que saía me deixava aos cuidados de Fred, seu melhor amigo.

A propósito disso, quando saí do meu quarto e ia passando pelo quarto dos meus pais ouvi Fred cantarolando.

Entrei no quarto da mãe e depois no seu ‘’closet”. Aquele lugar tinha muitos espelhos, inclusive na porta do guarda-roupa.

  Ele estava lá, de cabeça baixa e vestia algumas roupas da mãe, e ainda trazia calçados os sapatos dela! Fiquei tonto com tantos espelhos! Vi também ao espelho aquela mulher com aquele mesmo bebé ao colo, fiquei ainda mais baralhado.

Quando ele deu por mim, levantou a cara e vi o seu reflexo no espelho, sorrindo para mim. De repente, estávamos os dois num beco sem saída. Minha mãe apareceu ao fundo, corri para alcançá-la mas quanto mais corria mais distante ela ficava. Eu gritava, implorava por um seu abraço, ela não me ouvia no auge da minha angústia. Finalmente, ela começou a correr em minha direção, abri os braços para recebê-la, mas Fred apareceu e envolveu-a num forte abraço.

Gritei, desesperado:

- Mãe, mãe, mãe!

Em troca, só ouvi o eco da minha voz, como se ela não me visse. Só tinha olhos para o Fred, ele arruinou tudo!

Os dois conversavam, estavam a divertir-se. Minha mãe então lhe deu a mão, dizendo:

 - Vamos para casa, querido.

Os dois passaram por mim como se eu não existisse. Eu já não tinha voz, de tanto gritar.

 - Não, temos primeiro que ir à agência. Já te esqueceste do que me prometeste?

Quando eles estavam indo embora, Fred virou-se para trás, olhando para mim, e pôs-se a rir.                                            

Caí de joelhos e fiquei totalmente em pranto. Depois de recuperado, fui até a agência da mãe, ela tinha acabado de assinar um contrato, dando a Fred plenos poderes sobre a empresa.

- Obrigada, chérie, agora vamos para casa.

Fui novamente atrás deles. Dessa vez a mãe tinha-se ridicularizado ao ponto de servir de apoio para os pés de Fred. Ele começou a humilhá-la. Mas isso só a fazia idolatrá-lo ainda mais. A mãe tinha entregado tudo a Fred, a casa e tudo que tinha lá, mas, acima de tudo, a própria dignidade.

Fred mantinha-a suja, ela vestia apenas umas calças largas de cor cinza e um camisolão, não evidenciavam o seu corpo. Ele, pelo contrário, passou a usar as roupas e os sapatos da mãe, as suas jóias e tudo que a ela pertencia, até a própria mãe passou a ser sua propriedade, como se lhe tivesse feito uma lavagem cerebral.

Eu não aguentava mais ver a mãe sofrer tanto, então fiquei muito irritado. Não sei de onde tirei forças mas comecei a atirar o Fred para longe, mas, quanto mais o empurrava mais ele chegava perto. Empurrei-o mais uma vez, e dessa vez, fi-lo com tanta força que ele desapareceu. 

Ele desapareceu e levou a mãe com ele.

- És mesmo um herói - disse eu ao Sander.                                        

- Não, não O Fred propôs-me uma corrida até ao coração da mãe e ele venceu, e depois desapareceu, levando-a com ele. Fui dormir na cama dos meus pais para me sentir mais perto deles e sentir o cheiro que eles tinham imprimido lá. Chorei tanto, até dormir. Quando acordei, fui lavar a cara na casa de banho e, quando olhei para o espelho vi outra vez aquela mulher, junto com aquele bebé.

Voltei para o meu quarto, olhei-me ao espelho e aquela mulher estava lá mais uma vez com o bebé. Já nem sabia onde estavam os meus pais.

Era bem cedo quando acordei no outro dia e resolvi ir à cozinha tomar o pequeno-almoço. Enquanto descia as escadas ouvi o telefone tocar. A senhora da limpeza atendeu e eu sentei-me num dos degraus da escada, apoiando as mãos no corrimão enquanto a observava tranquilamente.

Enquanto ela falava ao telefone, um outro dispositivo tocou. Aquele toque não me era estranho, parecia ser o toque do telemóvel do pai, aquele toque era inesquecível, tinha-o gravado em minha memória desde antes de nascer.

Desci as escadas, seduzido pelo toque daquele dispositivo.

                                                

                                             Preso No Telemóvel

A Nina, assim se chamava a mulher da limpeza, estava connosco havia muito tempo, vinha dia sim dia não, era um pouco faladeira e muito bonita, parecia ser bem mas nova do que era. Eu sempre achei que o pai a olhava de forma diferente, e ela sempre lhe sorria, retribuindo os olhares.

A mãe decorou a casa com tantos espelhos, havia-os em todos os cantos da casa, assim ela podia se admirar a qualquer momento. A mãe não precisava disso, ela é mesmo linda, talvez quisesse analisar os defeitos que só existiam em sua cabeça.

Parei à frente da empregada de limpeza. Mesmo atrás dela ficava um grande espelho com aros de metal nobre. Ela parecia atormentada enquanto falava ao telefone e olhava com pena para mim como se tivesse acontecido algo de muito grave. O telemóvel que tinha no bolso voltou a tocar.

Novamente vi aquela mulher ao espelho, com o mesmo bebé ao colo. Nina então virou-se para trás, talvez para ver porque eu me olhava tanto ao espelho.

 Nossos olhos se cruzaram, estávamos agora em outra dimensão, em outro lugar. Fiquei escondido a observá-la, estava a segui-la havia um bom tempo. Ela entrou num motel, pediu as chaves na receção e subiu para o quarto. Assim que ela subiu, fui ter com o rececionista e lhe disse que minha mãe tinha acabado de entrar no motel e que eu queria saber em qual quarto ela estava, mas ele não me deu essa informação, era sigilosa, e nem era de bom-tom deixar um menino permanecer num lugar daqueles, acrescentou.

Mas eu tinha certeza de que aquela mulher sabia do paradeiro do meu pai. Desisti de convencer o rececionista a dar-me essa informação e fui para a rua, onde ouvi outra vez o toque do telemóvel do meu pai, com certeza aquela mulher é que o tinha. Olhei bem para aquele motel, saltei a vedação, escalei até a varanda de um dos quartos do primeiro andar. Estavam lá duas pessoas mas nem se aperceberam de mim quando lá entrei e saí também sem que dessem conta da minha presença. Procurei a Nina de quarto em quarto. O telemóvel continuava a tocar, sem parar! Cheguei ao terceiro andar e tive a certeza de que era do quarto que ficava ao fundo do corredor que vinha aquele som. Parei à frente do quarto 103, a Nina estava lá dentro com certeza. Bati à porta e, fingindo ser um dos empregados do hotel, disse que trazia o pequeno-almoço. Quando ela abriu a porta e viu que era eu quem estava lá, tentou fechá-la, procurando impedir a minha entrada. Num dado momento, cedi e ela conseguiu fechá-la!

Então procurei um canivete e forcei a abertura da porta. Entrei no quarto com toda a minha força e muito zangado. 

O telemóvel continuava tocando, estava em cima de um sofá vermelho que condizia com tudo naquele quarto e o meu pai estava lá dentro, dentro do telemóvel. Mas não era uma videochamada, o pai estava mesmo preso dentro do telemóvel.

Nina dançava, seduzindo o meu pai e sem se importar com a minha presença. Meu pai olhava para ela, divertindo-se muito. Ele não gostou muito de me ver e esboçou um sorriso amarelo. Nina ficou espantada com a minha presença e aproximou-se de mim, perguntando por que eu estava ali.

Ela então tentou expulsar-me à força do quarto, o pai ficou calado. Eu gritei o nome do meu pai, muitas vezes, mas ele nem me deu ouvidos.

Empurrei a Nina, e corri para perto do meu pai, estava bem à frente dele, mas ele não me via, ou fingia não ver, era como se eu não existisse.

Fiquei à frente dele, a gritar por seu nome. Nina então pegou no telemóvel e meteu-o entre os seus enormes seios. Logo a seguir peguei no telefone fixo do quarto, arranquei-lhe o fio e lancei-o ao pescoço da Nina, apertando-o muito, enquanto ela tentava se soltar, mas sem sucesso e simplesmente parou de o fazer. Empurrei-a e tirei-lhe o telemóvel, que, de repente, começou a sofrer interferências e depois ficou sem sinal. 

                                                 Professora A Domicílio

O pai estava preso no telemóvel, a última vez que o vi, ele estava tapando os ouvidos para não ouvi-lo tocar e fugia dos números e das letras, como se estivesse lá preso contra a sua vontade. Eu já não podia fazer nada por ele. Mas o pior estava por vir. Num ápice, o dispositivo simplesmente estoirou e o meu pai desfez-se em minúsculos mil pedaços!

Voltei para casa e antes mesmo de encostar a cabeça no sofá para descansar alguém bateu à porta. Fui abrir, era Dona Eduarda, a minha professora, ela vinha sempre à nossa casa de segunda a sábado para me lecionar. Era uma senhora robusta, com uns peitos enormes. Tinha o cabelo curto, todo preto e encaracolado. Era bonita, mas não era muito simpática, e mal dava para ver-lhe o pescoço devido à grande papada que tinha.

Tinha muito mau feitio, não gostava nada de crianças, talvez tenha sido por isso que optou por ser professora particular.

Logo que lhe abri a porta, ela entrou falando rudemente, como sempre:    

- Saia da frente, menino, e se recomponha para a aula.

 Ela me lançou um olhar, dos pés a cabeça, e disse: 

 - Limpa essa cara e nem penses que vais me assustar com esse ketchup que tem na roupa. Eu não alinho nessas brincadeiras de Halloween. E nem pense que só porque és lecionado em casa não precisas de assiduidade.  

Olhei à volta, a casa estava toda revirada. A professora atirou-me um olhar zangado e, abanando a cabeça, comentou:       

- É por essa e outras coisas que eu não suporto crianças.

Ela então puxou a cadeira e se sentou, à minha espera. Quando eu ia subir as escadas para trocar de roupa, tal como ela tinha ordenado, ela chamou-me e disse:

 - Vem cá, menino, acho que está alguém deitado atrás do sofá.

 Fui lá ver, era Nina quem estava lá.

O que será que lhe aconteceu? – perguntou a professora com as mãos apoiadas na cintura, abaixando-se para ver se Nina respirava.

Eu estava à frente daquele espelho grandíssimo que há na nossa sala, e não estava mais prestando atenção na professora, estava outra vez a ver aquela mulher e o mesmo bebé.

A professora chegou perto de mim tocou-me nas costas e disse:

 - O que será que lhe aconteceu? Acho que devemos chamar a polícia. A mulher não está a respirar.

Estávamos agora numa sala de aulas, milhares de crianças falavam e gritavam ao mesmo tempo. A dona Eduarda, fora de si, tentava impor silêncio. Mas ninguém a ouvia, ela estava irritada, perdera o controle da situação.

Um dos meninos, um dos mais malcomportados, então sugeriu que começássemos a irritar a professora, imitando os gestos que ela fazia enquanto ensinava. Comecei então a correr pelas escadas daquele gigantesco auditório, enquanto a professora me pedia que me sentasse e eu, em troca, dizia-lhe que era ela quem devia se sentar e ela começou a me perseguir pelo auditório. Depois sai de lá e ela veio logo atrás de mim. Entrei novamente no auditório, fechei a porta. Ela então bateu à porta e eu abri-a, perguntando-lhe porque que estava tão atrasada. 

Então ela, ainda mais irritada, ordenou que a deixa-se entrar, e o menino mal comportado mandou que a deixasse entrar. Quando ela entrou os meninos começaram a lhe atirar bolas de papel feitas com os testes que ela tinha corrigido. O menino malcomportado ainda me mandou bater na professora com uma cadeira, fiz como ele mandou e ela caiu ao chão e foi imediatamente atacada pelos meninos, que lhe enfiavam pedaços de papel na boca.

- Ás vezes, ages como um herói e outras vezes fazes coisas terríveis como esta que acabaste de contar!

- Eu, na verdade, não queria fazer isso, apenas entrei na brincadeira – justificou Sander.

                                          

                                                    A Avó Salva o Dia

Interrompi Sander dizendo – Meu pai é quem me ensinou a ler e a escrever e ele sempre me trazia livros para ler. Eu gostaria muito de ir estudar numa escola, mas eu nunca iria fazer mal ou perturbar algum professor.

Acrescentei ainda – Sander porque eras ensinado em casa?

- É que eu não consigo me relacionar bem com pessoas estranhas, por isso os meus pais resolveram que seria melhor eu ser educado em casa - disse Sander.

- Já eu gostaria de estar rodeado de pessoas, ter muitos amigos na escola, mas o pai não deixa.

Depois de sair daquele auditório fui para minha casa, estava um pouco baralhado! A professora estava deitada no chão da minha sala e continuava a vir à minha mente a imagem daquela mulher e do bebé. Corri para cima, entrei no quarto dos meus pais e escondi-me no armário que fica por baixo do lavatório da casa de banho. Fiquei lá, encolhido por alguns momentos, até que ouvi um barulho.

Fiquei com um bocado de medo. Espreitei pela porta e vi a sombra de uma pessoa. Saí do armário pronto para correr e vi a avó com uma grande barra de ferro na mão que devia ter tirado do candeeiro da sala.

 Ficou espantada ao me ver e disse:                                               

- O que fazes aqui, meu querido? Está tudo bem, ainda bem que não te fizeram mal algum.

- Alguma gangue invadiu a casa. Mal se espalhou a notícia do acidente dos teus pais e vieram assaltar-lhes a casa. Mas agora está tudo sobre controle. Já chamei a Polícia, eles devem chegar a qualquer momento.

- Avó, ainda bem que vieste, estou sozinho em casa, o pai está preso no telemóvel e a mãe foi presa por Fred dentro do espelho do quarto, tentei tirá-la de lá, mas não consegui.

- É normal que estejas te sentindo assim, meu filho, eu sei que está a ser um mau momento para ti.  Como já deves saber, os teus pais tiveram um acidente, mas não é motivo para ficares assim – afirmou a avó.

Ela depois aconselhou:

- Acalma-te, querido, está a ser um momento difícil, mas tens que te acalmar. Teu pai morreu mas a tua mãe, apesar de estar em coma, vai ficar bem - disse a avó.  

Então, gritando, respondi-lhe:

- Não pode ser, o pai está vivo, está vivo!

Ela então segurou os meus braços e perguntou:

- Viste quem esteve aqui em casa? Viste algum deles?

Arrastei a avó em direção ao espelho, e disse:

- Avó, venha ver, a mãe está dentro do espelho, ela está mesmo lá dentro.

Em frente ao espelho a avó me segurava os ombros. Então eu vi a mãe, ela estava bem mais nova, tinha quase a minha idade, ainda era uma adolescente.

Ela não queria participar num concurso de natação e a avó, de aparência mais nova, que estava ao seu lado à beira de uma piscina, começou a ralhar com ela:

- Helenice, lança-te à água e ganha essa medalha, és a melhor nadadora, a melhor de todas, tens que ganhar.

A minha mãe estava chorando e disse:

- Não consigo, não quero ser a melhor, quero me divertir, quero ver os meus amigos.

A avó então empurrou a minha mãe para dentro da piscina, mas ela conseguiu se segurar nas bordas. A avó, insistindo, gritava:

- Tens que nadar, tens que ganhar, foi para isso que nasceste, para competir e para ser a melhor.

- Eu não podia deixar a avó magoar a mãe, então corri e empurrei a avó, mas ela resistia e não caia na piscina. Seus dentes tornaram-se gigantescos, iguais aos dos tubarões que surgiram ao seu lado. Então corri e pulei da janela, fugindo assim de casa. Foi depois disso que me encontrei com aquele casal.

                                             

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