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# capítulo 3

A Verdadeira Identidade

Estava tão concentrada a ouvir as histórias de Sander que me esqueci das horas. Já estava a escurecer, lembrei-me de que o pai chegava em casa sempre à hora do jantar e se ele encontrasse o Sander ali daria cabo dele e de mim também.

Então, sugeri-lhe:                                                                                 

- Acho melhor entramos, podes ficar no meu quarto.

Estava adorando conversar com ele e já tinha o que escrever no meu caderno diário. Só o pai é que tinha as chaves do grande portão e era impossível escaparmos, a casa era cercada por um muro gigantesco.

Sander tinha que ficar ali e esperar até o dia seguinte. Quando o pai saísse, ele aproveitaria para fugir. Mas seria difícil para ele caminhar com o joelho ferido daquele jeito.

Sander concordou em ficar, afinal não tinha alternativa, mas disse que no dia seguinte tinha que ver os pais. E dava para ver que ele estava com muita fome e muito cansado, não parava de bocejar.                                        

Ajudei-o a se levantar e fomos para dentro de casa.

Depois de ele tomar um banho que lhe preparei fomos para o meu quarto. Levei o kit de primeiros socorros e tratei-lhe do machucado que tinha no joelho. Eu tinha muita prática nisso, cuidava das feridas do meu pai há já algum tempo.

Enquanto eu o curava, ele ficou bem quieto e olhava fixamente para mim, fiquei um bocadinho incomodada.

Depois disso fui à cozinha ver se havia alguma coisa para comermos. Ofereci-lhe um pedaço de pão, era a única coisa que tínhamos em casa para comer, ele comeu-o de uma só vez, estava mesmo esfomeado. Teria que aguardar até a noite para comer algo mais, o pai sempre trazia comida boa para o jantar.

Subimos ao meu quarto para que ele pudesse se esconder e ele continuou a contar-me as suas histórias, eu o ouvia com toda a atenção, mas, por vezes, achava estranho o que ele me dizia, e talvez um pouco impossível, e irreal, mas também não podia descartar a hipótese de ele ser um rapaz com superpoderes, tal como os dos livros que eu lia.                                         

Quanto mais conversávamos mais achava que ele era um herói, um protetor dos oprimidos, uma pessoa excecional.

Já eram oito da noite quando ouvimos aquele barulho, era o enorme portão a abrir-se, o pai tinha chegado em casa!

Então aconselhei:                                                                            

- Não faças barulho nenhum, meu pai não pode nem imaginar que estás aqui, ele pode até te matar e a mim com certeza põe de castigo.

Sander concordou, dizendo:                                                          

- Está bem, vou ficar bem quietinho, sou mesmo muito bom a ficar quieto.

- Agora vou descer para falar com ele e trazer alguma coisa para comermos. Fica bem quieto, está bem?

Enquanto me dirigia à porta, ele pegou no meu braço e disse sorrindo:                                                                                     

- Muito obrigada por tudo, Olívia.

Respondi-lhe com um sorriso.

Desci as escadas, meu pai estava sentado num sofá já velho com o seu rádio na mão, ouvindo música, era a única coisa que nos entretia. Sentei-me ao seu lado, ele não era muito falador. 

- Como foi o seu dia, querida? - perguntou o pai.                                         

- Foi normal, como sempre- respondi-lhe.

- Trouxe frango assado, come e deixe tudo arrumado depois – afirmou meu pai pouco depois.

Quando eu ia a caminho da cozinha a música na rádio parou de tocar e, de repente, ouviu-se uma voz:

‘’Interrompemos agora a nossa pausa musical para novamente alertar toda a população sobre o perigo que anda à solta: o menino psicopata, como ele foi apelidado, ainda não foi detido. Ele atende pelo nome de Sander, veste uma camisola azul e calças brancas e usa sandálias pretas, segundo descrição da avó. Ele é muito perigoso, apesar da pouca idade.‘’

Fiquei pasma com o que tinha ouvido, não queria acreditar! Permaneci à porta da cozinha a ouvir.

‘’Ele cometeu crimes graves na noite de ontem. Ele provocou o acidente de viação que vitimou os seus pais, danificando algumas peças do carro em que eles faziam uma viagem. O seu pai morreu e sua mãe está em coma ainda. Ele também matou de forma macabra e a sangue frio o melhor amigo de sua mãe, de nome Fred. Os peritos afirmam que Sander, com certeza, atirou-o contra os espelhos do “closet” da sua mãe e que talvez teve um surto psicótico e só por isso conseguiu carregar um homem com mais de o dobro da sua idade. Ele também asfixiou Nina, a jovem senhora que cuidava da limpeza da casa dos pais, foi encontrada com um fio de telefone amarrado ao pescoço.                                       

Sander também agrediu a professora que lhe dava aulas em casa, batendo-lhe com uma cadeira nas costas e enfiando-lhe folhas de papel na boca.

A única pessoa que saiu ilesa dessa situação foi a sua avó, pois a Polícia chegou a tempo, mas ele conseguiu fugir, pulando a janela de um primeiro andar. Desde então não se sabe nada do seu paradeiro.’’

A notícia foi bem esclarecedora para mim. Fiquei nervosa e acabei tropeçando na bancada onde estavam as tijelas.

Meu pai veio para perto de mim e me abraçou, dizendo:

- O que foi, meu anjo? Não fiques com medo. 

- Esse monstro nunca vai-te fazer mal algum, acalma-te. Prometo nunca deixar que ninguém te faça mal, muito menos esse assassino.

Meu pai abraçou-me num gesto protetor enquanto na rádio continuavam a alertar sobre o perigo que Sander oferecia à população.

Afastei-me do pai, e disse:

- Eu não estou com medo, pai, só não estou me sentindo muito bem e acabei tropeçando nas coisas.

E para acalmar os ânimos, brinquei, dizendo:                             

- E quem vai sentir medo de um fedelho, sendo sua filha? Ele nunca conseguiria entrar aqui.

Meu pai, então, apontando para a arma na parede disse:

- Se encontro esse pirralho estoiro-lhe os miolos. Estás a ver? É por isso que sempre te aviso, o mundo lá fora é muito perigoso. Aqui ninguém nunca te fará mal.

Depois desta conversa sinistra fui preparar o prato do pai, levei-o até a sala, onde ele estava, e pedi-lhe permissão para ir comer no quarto, e ele deixou, ficando ali enquanto limpava a sua pistola.

Eu estava em pânico, tinha escondido um assassino em casa. Sander tinha-me feito acreditar que era uma pessoa do bem, um herói, quando, na verdade, não passava de um assassino que tinha destruído a vida de muita gente.

Subi rapidamente as escadas, entrei no quarto e fechei a porta num instante. Estava transtornada. Encostei-me à porta e fui deslizando até me sentar no chão. Sander estava à minha frente e me encarava, enquanto sorria. Devolvi-lhe um olhar carregado de raiva, eu estava mesmo muito zangada.                                                                                                                                  

Coloquei no chão a tijela que trazia na mão e continuei a encará-lo.                                                          

Ele não se sentiu minimamente incomodado. Sentou-se no chão, encostado à minha cama, bem à minha frente.

Empurrei a comida para perto dele e ele abriu a tijela, sorrindo ao ver o que tinha lá dentro. Desatou logo a comer, parecia um leão esfomeado.

Ele não imaginava quanta raiva eu sentia dele naquele momento. Passavam-se mil e umas coisas em minha cabeça: eu tinha um assassino em casa que podia acabar com a minha vida a qualquer momento. Se o meu pai o achasse escondido no meu quarto matava-o a ele e matava-me também.

Mas uma única coisa me intrigava: por que Sander tinha-me enganado? Importava-me ainda mais saber como uma pessoa tão doce e carinhosa podia ser um monstro ao mesmo tempo?

Ele comia com aquele olhar inocente e o sorriso tímido de sempre. Quando reparou o quanto eu estava zangada, parou de sorrir.                                             

Não aguentava mais ficar calada, tive que o confrontar. Em um tom de raiva, perguntei:

- Por que mentiste para mim? Ele não me respondeu, e continuou a mastigar ainda mais depressa.

Era difícil acreditar que aquela doce criatura que estava à minha frente não passava de um assassino brutal, eu precisava de uma explicação!

Ele parecia pouco se importar com o facto de eu estar zangada.

Então perguntei-lhe:

- Onde estão os teus pais?

Ele respondeu:

- Já disse, perdi-os, o pai ficou preso num telemóvel e a mãe está dentro de um espelho …

Naquela hora, fervendo de raiva, disse-lhe:                                       

- Eu não acredito em ti! Deves estar mesmo a querer gozar com a minha cara! Já sei toda a verdade, tu não passas de uma grande fraude! Como eu fui burra, como eu fui capaz de acreditar em ti? Bem que o pai me avisou sobre as pessoas e o mundo fora daqui. Mesmo assim, eu fui capaz de traí-lo e deixei que te escondesses no meu quarto.

- Do que estás a falar?! Eu juro que tudo o que te contei é verdade - afirmou Sander, defendendo-se.

- Tu provocaste o acidente que levou à morte do teu pai, e tua mãe ainda está entre a vida e a morte – respondi-lhe.

- Mas juro! Não fiz mal a ninguém e muito menos a meus pais – respondeu Sander.

- Mas não é o que estão a noticiar na rádio! Estás a ser procurado por todo o país, estão todos em estado de alerta, és um dos assassinos mais odiados de sempre – afirmei.

Sander revidou rapidamente:

- Eu juro que não fiz nada de mal a ninguém, eu só queria salvar os meus pais, eu só queria ajudar aos outros.

- Então como é que explicas o facto de todas as pessoas envolvidas nas histórias que me contaste estarem mortas ou gravemente feridas? – questionei-o, cheia de raiva.

- Já não te entendo! Pouco tempo atrás chamavas-me herói, agora dizes que sou assassino e me humilhas? – retorquiu Sander.

Respondi-lhe, tremendo de medo:

 - És um assassino patético que se diverte a inventar histórias fantásticas envolvendo suas vítimas. Quero, no entanto, que saibas que não tenho medo de ti.                                             

Ele me interrompeu, dizendo:

- Desculpa-me, mas a única pessoa patética aqui és tu. Se fosses assim tão esperta e teu pai o teu protetor todo-poderoso, como é que falharam ao ponto de terem um assassino em casa, no teu quarto? Se eu fosse um assassino já tinha matado há muito tempo a ti e ao teu pai patético, que te mantém cativa para alimentar seu próprio ego.

- Por que me julgas se nem sequer me conheces bem?

- Tu nunca saíste deste lugar e te achas no direito de julgar todo o mundo lá fora. Só vês o mundo através de uma pequena abertura na parte traseira da tua casa. E para que conste, lá fora existem pessoas boas, outras más. Mas não tens o direito de julgar ninguém.

As palavras de Sander naquele momento foram muito duras. Chorei, porque sabia que parte do que ele dizia era verdade.

Não podia ser ele o assassino, talvez alguém estivesse a tentar incriminá-lo! Mas a notícia era bem clara e concisa. Eu sabia que era um risco enorme confiar nele, mas eu preferi fazê-lo. Então, não me sobrou alternativa:

- Desculpa-me se te magoei, mas eu ouve dizer na rádio e…

Sander então me interrompeu, dizendo:

- Eu é que tenho que te pedir desculpas, não devia ter falado assim contigo.

- Eu é que fui má para ti, talvez alguém queira te incriminar, não me entra na cabeça que sejas capaz de matar alguém. Consigo sentir a tua vibração e sinto que és boa pessoa.

‘’O Menino no Espelho’’

Sander, quase chorando, desabafou:

 - Na verdade, nem sei explicar o que está acontecendo comigo. Só sei que desde que o meu avião de brinquedo foi de encontro aquele espelho e foi sugado por ele minha vida mudou completamente, tem-me acontecido coisas horríveis. O avião flutuava dentro do espelho e cheguei mais perto para tentar pegá-lo. Nesse momento vi ao espelho um menino que estava todo ferido, dos pés à cabeça, e o espelho também ficou vermelho de sangue. Corri, meu coração batia forte e descompassado de tanto medo.

Uma voz fria ecoou forte dentro de casa, e gritava:

 - Ajuda-me, Sander.

Enchi-me de coragem e olhei-me novamente para o espelho. O menino apareceu de novo, desta vez não me assustei, e ele gritou novamente por ajuda.

Foi essa a primeira vez que vi aquela mulher com um bebé ao colo. Tenho certeza de que aquele bebé sou eu, mas não faço ideia de quem seja aquela mulher.

Fui para o quarto dos meus pais e já sabes o que aconteceu depois disso.                                      

- Então o menino te pediu ajuda no mesmo dia em que descobriste o tal tesouro para os teus pais – comentei.

- Sim, foi no mesmo dia.

- Era sexta-feira de Halloween e disseste que teus pais iam numa festa mas o que eu ouvi na rádio não bate com o que me contaste. E há mais uma coisa em que reparei. É que sempre que ias me contar uma história falavas antes de espelhos e havia um contato visual entre ti e outras pessoas. Acho que agora está tudo a fazer sentido. Talvez o menino que te pediu ajuda no espelho tenha alguma coisa a ver com esses crimes todos. É como se entrasses em outra dimensão quando vês a tua imagem refletida no espelho. E quando te vês com outras pessoas vês o que elas mais desejam, como no caso de Fred, ou o que elas mais temem, como no caso da professora. Vês os segredos mais profundos das pessoas. Consegues ver o que ninguém vê, consegues ver a alma das pessoas através de um espelho. Mas isso torna-se um fardo, pois o rapaz do espelho é que deve m****r que cometas todos aqueles crimes. É só uma suposição, mas talvez seja isto que se está a passar.

- Obrigada por tentares acalmar-me, mas a verdade é que não sei o que se está a passar comigo, mas estou com muito medo. E custa-me a acreditar que o pai esteja morto e que o culpado sou eu. Como eu queria que meu avião nunca tivesse ido parar dentro do espelho e nunca ter dado ouvido àquele menino no espelho.

- Não fiques assim, eu sei muito bem como é perder alguém de que gostamos muito. Minha mãe também morreu por minha culpa ao dar-me à luz. Até hoje sofro com isso. Eu dava tudo para tê-la de volta.

Sander, em pranto, respondeu:

- Mas não és como eu, um assassino, tenho as mãos sujas de sangue.

Dava nitidamente para ver que a realidade lhe tinha batido à porta, agora ele começara realmente a sofrer. Perguntei-lhe:    

                                                                                                                                                                  - Mas, e agora, o que vais fazer? Amanhã quando saíres daqui vais ser preso, penso eu. Será uma pena se fores preso por causa de um crime em que não és culpado. Eles nem vão te dar ouvidos, um juiz nunca iria acreditar que fizeste o que fizeste por causa de um menino que viste ao espelho.

Sander, andando de um lado para o outro, disse:

- Eu quero morrer, eu não acredito que fiz tudo isso.

- Não digas isso, vais conseguir provar que não tiveste culpa e, lembra-te, tua mãe pode acordar do coma em breve e a tua avó ainda está viva. Ou seja, tens pessoas que te amam. E eu prometo fazer o que for preciso para ajudar-te.

- Muito obrigada, Olívia. Como vais fazer isso, estando aqui presa?

- Tens razão, já está na hora de eu conhecer o mundo, estou farta de viver aqui presa com o meu pai. Amanhã fugiremos juntos. Eu quero ser livre – afirmou Olívia.

- Mas é quase impossível conseguires fugir daqui. Como vais fazer para sobreviver lá fora? – perguntou Sander.

- Sabes, eu sempre acreditei que nada é impossível até tentarmos. Se acreditarmos, podes ter a certeza de que vamos conseguir. Basta crermos em nosso poder interior- declarou Olívia.

Conversamos por mais algum tempo, depois preparei-lhe uma cama no chão, ao lado da minha cama.

Não era costume o pai entrar em meu quarto, assim Sander estaria seguro.

Falávamos baixinho, quase cochichando. Meu quarto não tinha luz elétrica, acendi a luz de um cadeeiro velho que o pai trouxera.

Deitamo-nos, e continuamos a conversa.

- Talvez o menino no espelho seja alguma alma maligna que residia ali em vossa casa e está a usar-te para conseguir acabar com a vida de outros.

Minutos depois Sander começou a tirar objetos que estavam debaixo da minha cama. Primeiro ele retirou um pente e entregou-mo.

Depois tirou de lá um ioiô. Ri-me tanto, havia muito tempo que o procurava.                                                                          

Por último tirou um espelho.

Ele entregou-me o espelho. Foi um momento bem tenso, ambos sabíamos da gravidade de ele ter um espelho na mão. E logo que ele o tirou de debaixo da cama nossos olhos se cruzaram naquele pequeno espelho redondo que ele tinha nas suas mãos.

Confesso que fiquei cheia de medo. Sander ficou parado, olhando para o espelho, como que petrificado. E deixou-o cair ao chão.                                       

Eu sabia que sempre que os olhos profundos de Sander se cruzavam com outros olhos no espelho os donos desses outros olhos acabavam mortos, ou feridos. Mas eu, não sei como, confiava totalmente que ele nunca me faria mal algum.

Foram os instantes mais tensos da minha vida, mas seguidos de uma calma sem igual, como nunca sentira antes, até senti a minha pele se arrepiar, senti-me leve como uma pena.                                         

Minutos depois ele despertou, virou-se para mim. Eu sorria. Ele então perguntou com uma voz serena, quase a chorar:                                                                                                        

- Como consegues sorrir sabendo que acabei de ver a tua imagem no espelho e tu, melhor do que ninguém, sabes o que isso significa.                                                       

Eu podia ter-te machucado, eu sou um monstro.

Sander então se levantou, dirigiu-se à janela e disse:

- Vou embora, não posso arriscar-me a fazer-te mal.

Segurando-o pelo braço para impedir que pulasse da janela, disse-lhe:                                                                                                       

- Farás mal a ti mesmo se o pai te encontra agora, ele vai-te matar, e mata a mim também com certeza. Tens de ficar e esperar até amanhã. Mesmo que consigas pular desta janela não conseguirás sair para a rua. O muro é alto e escorregadio. Não vás embora, eu sei que nunca me farias mal. Quando estavas com o espelho na mão pude sentir uma paz interior, como se tocasses e acariciasses a minha alma com as tuas próprias mãos. Como conseguiste curar uma ferida em mim eu não sei-te explicar, mas foi o que senti.

O Fundo do Poço

                                            

Mas Sander, muito angustiado, voltou a dizer:                                                        

- Mas podia ter-te machucado, ou até tirado tua vida, como fiz aos outros.

- Segue o meu raciocínio. Acho que tens um dom.

- Olívia, sabes, sonhei contigo noutra dimensão.

- E o que sonhaste?

- Na verdade, não sei se posso dizer que foi um sonho, estivemos os dois noutra dimensão, não aqui dentro do teu quarto, e estávamos numa outra época, em outro século, como se já nos tivéssemos conhecido antes.

Pude ver através de seu olhar o que o inquietava.

- Então conte-me, que estou a ficar curiosa.

- Eramos nós e depois já não eramos nós, vi-te moça feita, estavas linda. Eu, um rapagão, conheci-te num lugar lindo e mágico, cheirava a brisa fresca de verão. Sentavas-te sempre num banco em frente à tua casa, um grande casarão branco, cheio de flores. Tua pele brilhava ao sol e quando nos vimos naquele dia foi como um encontro aguardado há milhares de anos.                                     

Tu me sorrias, então cheguei mais perto, na rua tocava uma melodia feita pelos pássaros, era um ambiente perfeito para dançar, convidei-te a dançar, tu aceitaste.

Estavas linda, melhor, majestosa, as ondas dos teus cabelos dançavam com o vento. Tinhas um lindo vestido longo e azul que revelava as tuas belas curvas. O teu sorriso brilhava mais do que todos os acessórios do mundo, e com ele conseguias tocar o mundo.

Interrompi-o:   

- Falas bonito quando contas as tuas histórias.

Sander justificou-se:                                                                               

- Sabes, eu não consigo controlar as minhas visões. Enquanto dançávamos e tu estavas aconchegada em meus braços, dirigiu-se em nossa direção um homem, era Bruno que tinha uma arma na mão, chegou rápido e arrancou-te dos meus braços sem dizer sequer uma palavra! Puxava-te pelos braços, mas tu não querias ir. Viravas a cara para trás como que a implorar por ajuda mas naquele momento não me ocorreu fazer nada, fiquei calmo, dentro de mim uma profusão de sentimentos, talvez sentisse culpa. Se eu não tivesse entrado em tua vida talvez nada disto teria acontecido.

- Por que não o impediste de me levar? Devias tê-lo feito! - - afirmou Olívia.

Sander então revidou:

- E o fiz. Tente imaginar como é tirar um pedaço de ti mesmo, verás que leva um tempo até que te acalmes.

- Fiquei parado ali, o sol se escondeu e o céu se fez triste, aquela aurora jubilosa deu lugar a uma manhã triste e fria, o vento soprava tão forte que quase me arrancou do chão. Mas o peso da minha tristeza por não te ter em meus braços era tão grande que fiquei plantado ali, quando o ventou levou tudo, as lindas plantas, o banco do jardim, a casa. O peso da dor por te perder era a certeza de que te amava e que tinha que lutar por ti.

- Eu também me senti angustiada, mas depois foi como se alguém tivesse tocado em minha alma. Será influência do teu dom espiritual? Será um encontro de almas? -perguntei.

- Tentei resgatar-te. Andava contra o vento, mas era o vento mais forte que alguma vez possas imaginar! Caminhei durante imenso tempo, mas nada. Parecia uma estrada sem fim. Perto de um poço ouvi os teus gemidos enquanto imploravas por socorro. De repente levantei a cara e vi a poucos centímetros de mim uma mulher, que usava um longo vestido branco e um véu infinitamente comprido, ela reluzia.                                               

Pude notar que ela tinha as mesmas feições que tu tens, fora o fato de ela parecer mais madura e de ser uma mulher já feita. Ela chegou perto de mim, tocou a cabeça e sorriu.

- Entrego em tuas mãos a ponta do meu véu para que possas salvar essa jovem e bela moça. Que cuides dela para sempre e que tenham bênçãos eternas.

Segurei em seu véu e desci até o fundo daquele poço que parecia infinitamente profundo. Mas com a ajuda daquele véu eu sentia que conseguiria atingir até o núcleo terreste. Quanto cheguei no fundo, estavas lá, chorosa e triste. Estavas encolhida em tuas próprias mágoas, de cabeça baixa. Quando cheguei perto de ti, estendi-te uma mão para te ajudar, mas recusaste-a.

- Venha comigo, Olívia, fica comigo – disse eu.

Mas tu apenas choravas.

- Tenho que ficar e cuidar do meu pai, tenho que ficar – dizia apenas.

Então reparei que aos teus pés estava o homem que a arrancara dos meus braços. Parecia estar dormindo.

- Não posso, meu pai mandou-me ficar – repetiu Olívia.                                                                                                    

Então supliquei-lhe:

- Vem comigo, eu prometo que voltamos para o tirar do fundo deste poço.

Por fim aceitaste. Chegados à superfície a mulher já não estava lá, tive tempo apenas para ver as suas vestes brancas se tornando verdes, e o véu em que segurávamos encheu-se de todas as cores do arco-íris, caindo depois ao chão, que também se cobriu de verde. O céu se abriu, o sol brilhava, as plantas estavam de volta e o poço se transformou num repuxo que, jorrando grande quantidade de água, ajudou a formar um arco-íris nas redondezas.

Sem saída

Nossa conversa foi bruscamente interrompida quando ouvimos passos nas escadas, era o meu pai e vinha em direção ao meu quarto.

Com o dedo indicador eu então fiz sinal de silêncio para Sander, que ficara de olhos arregalados. Em surdina, disse-lhe ao pé do ouvido que se escondesse atrás da porta.

Meu pai entrou, olhou para todos os cantos, como quem procura alguma coisa. Havia muito tempo que ele não entrava lá. Ele foi para o lado esquerdo da minha cama. Com a pistola na mão, ele se abaixou e pegou o pequeno espelho que estava no chão. Olhou-se ao espelho e viu também refletida a imagem de Sander, que estava escondido atrás da porta! Corri até Sander e abracei-o numa tentativa de protegê-lo. Meu pai ficou enfurecido, podia-se ver que estava muito nervoso. Eu sabia que ele poderia atirar e matar-nos, mas eu tinha que proteger Sander, sentia que isso era minha missão. Havia nele algo que eu não conseguia explicar, um mistério.

Meu pai, a gaguejar, perguntou:                                                           

- Olívia por que tens um rapaz dentro do teu quarto e, pior ainda, um assassino?                                              

- Desculpa pai, mas ele não é um assassino, ele é especial e não vou deixar que lhe faças mal algum.

Ainda transtornado, meu pai continuou apontando a arma para nós e disse:                                                                                  

- Mas não é o que disseste há pouco, quando ouviste a notícia na rádio. Vê-se logo que tens o sangue daquele… 

E calou-se, deixando a frase por acabar.                                                                                                        

- É melhor te afastares dele, vou atirar! Se não te afastares mato os dois.

Meu pai era capaz de fazê-lo, mas não temi.

Naquele instante ouvimos um barulho como se arrobassem o grande portão. Meu pai continuava apontando a arma para nós e sempre de olho em nós, chegou mais perto da porta para tentar ver do que se tratava, estava muito assustado.

Sander continuava em transe. Desde que o meu pai o vira refletido no espelho ele estava presumivelmente vagando pelos segredos mais secretos de Bruno.

Os passos foram se multiplicando nas escadas. Quando ouvimos alguém gritar ‘’Polícia’’ repetidas vezes para mim foi um alívio muito grande naquele momento.

Meu pai atirou para cima e naquele instante Sander acordou do transe. Ficamos apavorados.

Bruno então gritou:

- Tenho dois reféns, se tentarem entrar mato a nós três e fim da história.

Eu não duvidei de que ele iria fazê-lo! Era obcecado por armas, morrer daquela maneira era normal para ele. Também, não era para menos. Ele estava sempre armado, parecia dever a Deus e ao mundo. Sem contar que vivíamos no meio do nada, a casa era completamente cercada. Para ele, a Polícia estar ali era pior do que a presença de Sander.

A polícia tentou negociar com o meu pai, mas ele continuava a ameaçar matar-nos. Menos de 30 minutos depois ouvimos um tiro, tinha entrado pela janela, efetuado provavelmente por um especialista.

Meu pai se atirou ao chão, eu e Sander também, no mesmo instante. Os agentes da Polícia finalmente entraram, depois de um deles chutar a porta.

Até aquele momento eu não sabia quem tinha sido atingido pelo tiro, mas vi que o meu pai começava a sangrar, tinha sido alvejado no peito. Soltei Sander e fui abraçar meu pai, ainda estava vivo.                                           

Um agente da Polícia então levantou Sander do chão para levá-lo embora, mas antes de abandonar o meu quarto ele ainda conseguiu segurar uma das minhas mãos e disse:

 - Ele não é teu pai, procure o teu verdadeiro pai.

Meus olhos estavam cheios de lágrimas, meu pai estava morrendo, enquanto a polícia levava Sander, que, enquanto segurava a minha mão, ainda disse: “E se fosse tudo um sonho, queria voltar a dormir e permanecer assim eternamente”. A frase parecia ser a estrofe de uma canção, ou parte de um poema. E de certeza tinha a ver com a visão que ele teve quando enxergou o ínfimo de Bruno.

O agente da Polícia puxou Sander, levando-o finalmente embora.

Meu pai então disse:

 - Olívia, vai procurar o teu pai, o nome dele é Luís Henrique Almeida. Procure-o…

Foram as suas últimas palavras.

Foi difícil ouvir o último fôlego do meu pai.

Era a primeira vez que via outras pessoas, exceto o pai, e eles tinham-lhe ceifado a vida. Levaram-me também para baixo. Enquanto ajeitavam o corpo já sem vida do pai numa maca, ouvi os agentes da Polícias comentarem que ele pertencia a uma organização criminosa qualquer e era procurado por vários crimes.

Já tinham levado Sander, nem sei para onde.

Uma senhora então perguntou:                                                      

- E a menina, para onde é que vamos levá-la?    

Um colega respondeu-lhe:                                                                    

- Talvez para um abrigo, um lar para menores, parece-me que não oferece nenhum perigo.

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