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# capítulo 4

O orfanato

Fui levada para um abrigo de meninas órfãs. Cheguei lá por volta das 10 horas da noite, as outras meninas tinham acabado de jantar e já se tinham recolhido.

Levaram-me para um quarto que tinha várias camas dispostas lado a lado. Uma assistente mostrou-me qual seria a minha cama e foi-se embora.

Logo que ela saiu as meninas se levantaram e começaram a cochichar, olhando para mim. Fiquei incomodada, todas elas observavam-me com nítido desagrado, demonstrando que a minha presença não lhes agradava. Apontavam-me o dedo, exceto uma rapariga que continuava deitada. Subitamente, ela se levantou e veio em minha direção. Estava vestida toda de preto, à moda dos rapazes, e tinha os lábios pintados da mesma cor e umas lindas tranças, tão compridas que lhe chegavam à cintura. Trazia um lenço também preto na cabeça.                                               

Segurou-se ao ferro da minha cama e disse:                                     

- Meu nome é Lia. E tu deves ser a Olívia, pois não?                                                                             

Apenas abanei a cabeça para cima e para baixo, em sinal de consentimento.

- Sabias que és o assunto do momento aqui no orfanato? Todos estavam falando de ti hoje.

Lancei-lhe um olhar, perguntando a seguir:                                                

- O que estiveram a falar de mim?

- Ouvi dizer que estavas em cativeiro com o assassino mais procurado do momento, o lendário Sander, ‘‘o menino psicopata’’. Dizem também que eras mantida refém pelo teu próprio pai, desde que nasceste - disse Lia.

E acrescentou:

- As outras meninas estão cheias de medo de ti.

- Não é bem assim. Na verdade, meu pai já não é meu pai. E Sander não é um assassino, mas esta é uma longa história – respondi.

Lia então se sentou à cabeceira da cama e continuamos a conversar.

- Mas por acaso sabes para onde é que levaram Sander? – perguntei.                                                   

Lia respondeu:

 - Uns dizem que ele será decapitado, outros que será enforcado.

O quê? Eles não podem fazer isso! – reagi.

- Acalma-te, eu estava a brincar. Ouvi na TV que ele será levado para um reformatório e quando completar 18 anos será transferido para uma prisão. 

- Ele um dia há-de conseguir provar que é inocente – respondi.

- Não sei, o rapaz está mesmo encrencado. Agora tenho que ir dormir. Daqui a uns cinco minutos a assistente vai passar por aqui para ver se estamos todas a dormir.

Minha cama ficava no meio do quarto, do lado esquerdo, assim como do lado direito ficavam quatro camas, ocupadas por outras meninas. Logo que a Lia se foi embora, elas começaram a atirar-me travesseiros e sapatos e tudo quanto estava ao seu alcance.

Lia se levantou, ralhou com elas e depois convidou-me a partilhar a sua cama. 

- Elas sempre fazem isso com as novatas, sobretudo se tiverem um passado como o nosso – disse Lia.

- Tu também foste criada em cativeiro? – perguntei à Lia.

- Não, eu cresci livre nas ruas com a minha mãe, ela estava envolvida com drogas, foi presa e eu vim parar aqui. Nunca conheci o meu pai. Já integrei um gangue, já fugi de vários orfanatos, mas daqui é impossível fugir.

No dia seguinte, de manhã, a assistente acordou-me para que eu tomasse o pequeno-almoço e depois fosse dar uma entrevista coletiva muito importante.

Durante a entrevista falei do quanto Sander era importante para mim, falei do meu pai Bruno e, por fim, lancei um apelo:

 - Estou à procura do senhor Luís Henrique Cabral Almeida. Antes de morrer meu pai me disse para procurá-lo porque este é o meu verdadeiro pai.

E depois citei a frase que Sander me ensinara quando me alertou que Bruno não era meu pai de verdade: “E se fosse tudo um sonho, queria voltar a dormir e permanecer assim eternamente’’

No final da entrevista Lia me aguardava à porta do gabinete da directora, dei-lhe a mão e fomos à sala de estar. As outras meninas que estavam lá, divertindo-se às gargalhadas, saíram de lá mal nos viram, como se fossemos algum tipo de assombração.                                             

Sentamo-nos e continuamos a nossa conversa. Lia era muito boa companhia, fazia-me rir mesmo estando eu me sentindo muito mal. Minha vida inteira tinha mudado em menos de 24 horas.

Às 8 horas da noite fui chamada para ir ao gabinete da diretora. A assistente acompanhou-me até lá, disse que eu tinha que ir falar com uma pessoa muito importante.

Quando chegamos lá a assistente abriu a porta e mandou-me entrar. Lá dentro, vi um homem de costas, que olhava pela janela. Ao sentir-me entrar, virou-se e sorriu para mim.

Aproximou-se de mim, pegou nas minhas mãos e pediu-me para sentar.

Ele então disse:                                                                               

- Sabias que eu conhecia Bruno, quando ele era ainda muito jovem, e também conheci a tua mãe. Ela era tão bela como tu.                                                                          

- Muito obrigada, mas posso saber quem é o senhor? - perguntei-lhe.

- Quando me disseram que a tua mãe não tinha resistido ao parto, eu quis-te conhecer. Mas a minha tia disse que a criança também tinha morrido.                                     

Bruno então me viu e tentou bater-me, culpando-me por tudo, mas todos o impediram. Meus pais nunca iriam permitir que eu casasse com uma moça que trabalhava nas hortas da nossa família e que tinha um irmão tão problemático como Bruno, que vivia de favor em casa da minha tia.

Respondi-lhe num tom de ironia:

- Então, és tu o senhor Luís Almeida!

- Sim, sou eu o teu pai. – respondeu ele.

- Não, não és o meu pai! Meu pai é Bruno e ele está morto. Abandonaste a minha mãe e agora contas-me isso como se fosse normal. 

- Não é bem assim, querida. Eu era jovem na época e tinha que obedecer aos meus pais. Quando eles souberam que sua mãe estava esperando um filho meu, mandaram-me logo para a cidade e de seguida arranjaram-me um casamento, eu não aceitei, desisti de tudo, fugi. No dia em que voltei para ficar com a tua mãe, disseram-me que ela morreu. Minha tia informou-me ainda que a bebé também tinha morrido e aconselhou-me a voltar para a cidade e seguir com a minha vida. Voltei para a cidade, para a minha vida amarga. Sofri muito durante anos, imaginando como poderia ter sido a nossa vida junta.

Ontem vi na televisão que Bruno mantinha uma menina em cativeiro, pensei logo que eras tu, mas eu já me acomodara à ideia de ter-te perdido. Hoje de manhã, quando te vi a dar aquela entrevista, tive logo a certeza de que eras a minha filha. E quando citaste aquele texto que a tua mãe costumava dizer-me senti meu coração bater de novo, como se eu tivesse renascido. Eu amei muito a tua mãe, queria casar-me com ela, mas não foi possível. Depois de terminar o meu curso e da morte da tua mãe, fiquei depressivo, só voltei a amar muitos anos depois. Casei-me há oito anos, tenho um filho, ele se chama Júnior. Minha esposa, Ama, é muito meiga, ela tem um filho de 15 anos chamado Wilker, ele é um bom rapaz e está passando por problemas de adolescência, tal como tu. Vais adorar conhecê-los. Ama ficou muito feliz quando soube de ti, serão grandes amigas. Vais gostar muito de viver connosco.

- Eu não quero ir contigo, não vou viver com quem abandonou a minha mãe – respondi.                                           

- Sabes o que é viver 14 anos em cativeiro? Sabes o que é viver separada de tudo e de todos e ter que fazer sempre as mesmas coisas, todos os dias? – continuei questionando-o.

Depois desabafei:

- Enquanto em estive lá imaginava como seria se eu tivesse uma família que me amasse, amigos com quem eu pudesse contar e partilhar coisas. Sonhei a minha vida inteira com o dia em que eu sairia de lá, mas agora que te oiço, sinto que estava melhor naquele lugar. O Bruno sempre teve razão, agora entendo a quem ele se referia quando dizia que as pessoas são ruins.                                                                                         

- Meu pai então me interrompeu: 

- Ó filha, teu tio Bruno é um sociopata, não sei como consegues acreditar nele! Ele privou-te de tantas coisas. E ele só fez isso para me magoar. Ele nunca aprovou o meu relacionamento com a tua mãe. Estou muito feliz por te conhecer, ao menos Bruno teve a decência de dizer-te para procurares o teu verdadeiro pai.

- Não foi Bruno quem me disse para te procurar, foi a minha mãe e graças ao Sander.

- O que estás a dizer? – perguntou meu pai.                                           

- Sander é especial, ele consegue tocar o interior das pessoas, consegue ver os nossos segredos mais profundos – respondi.                                  

- Tens a noção de que estás a falar de um menino psicopata, que atentou contra a vida de várias pessoas inclusive dos próprios pais, e que cometeu vários crimes? Ele é um assassino a sangue-frio, ele podia ter-te matado, sabias disso? – perguntou meu pai.

Indignada com ele, revidei:

- Não fales assim do meu amigo, ele salvou-me, tirou-me do fundo do poço. Ele deu-me uma razão para continuar a lutar. Ele deu-me a chance de me sentir viva. Ele tem um dom espiritual, ele está apenas sendo usado por uma força maligna, que o leva a fazer mal às pessoas. Ele, em sonhos, melhor, numa outra dimensão não a dos sentimentos nem a da razão, conseguiu ver a minha mãe e deu-lhe a missão de cuidar de mim para sempre.

Um pouco incrédulo, meu pai perguntou:

- Estás a dizer-me que o teu amigo tem um dom espiritual, que ele cometeu aqueles crimes sob a influência de forças sobrenaturais?                                           

- Sim, isso mesmo, e foi ele que me ensinou aquela frase “e se fosse tudo um sonho, queria voltar a dormir e permanecer assim eternamente”.                                                                                              

- Mas, minha querida, é impossível termos contato com espíritos, eu não acredito nessas coisas, esse rapaz é um louco, um lunático. Talvez Bruno tenha lhe contado a história toda e ele narrou-a depois para ti para te impressionar - reagiu meu pai.

- Não, nada disso, Bruno não conheceu Sander, ele entrou em nossa casa num momento em que ele se descuidou.   

- Mas os dois, até neste ponto, têm muito em comum, são ambos mentalmente desequilibrados.

Ao ouvir este comentário, fiquei extramente zangada, levantei-me e dei-lhe as costas, abri a porta e saí do gabinete, mas antes de sair deixei bem claro que estava indignada, ele tinha menosprezado as pessoas mais importantes da minha vida.

No dia seguinte, segunda-feira, bem cedo a diretora foi buscar-me ao quarto.                                          

Ordenou que arrumasse todas as minhas coisas porque eu ia viver com o meu pai. Mas eu não queria ir viver com ele, tinha-me deixado uma péssima impressão no dia anterior.

A diretora acompanhou me até à porta da sua sala onde meu pai e o seu advogado estavam me aguardando. Chegando lá, corri de volta para o quarto e abracei a Lia, que estava deitada ainda.

A assistente veio até mim e pôs-se a conversar comigo:                         

- Ainda não acabaste de te arrumar, ainda não estás pronta para ir.

- É que não quero ir viver com ele.

- Por que não? Sabes, tens uma sorte imensa, vais sair daqui para ir viver com o teu pai e com o teu irmão, tens uma família à tua espera. Além disso, na tua idade é quase impossível alguém querer adotar-te!

Lia interrompeu então a nossa conversa, dizendo:                                      

- Olívia, ela tem razão, tens que ir com o teu pai, a vida aqui não é boa, vai ser bem melhor se fores viver com a tua família.

Segurando as mãos de Lia, desabafei:                                            

- Mas vais ficar aqui sozinha…

Ela voltou a interromper-me, dizendo:                                                            

- Vai querida, depois me ajudas a sair daqui, e vamos aprontar muito quando eu for embora.

- Está bem, eu vou, mas prometo vir cá visitar-te sempre – afirmei.

Dei-lhe um abraço e depois ela e a assistente ajudaram-me a arrumar as minhas coisas, eu levava o meu caderno diário na mala, religiosamente.

A assistente então me acompanhou até o gabinete da diretora. Ao ver-me, meu pai sorriu. Despedi-me da diretora e da assistente e fomos embora.

A Casa dos Almeida

Era ele quem conduzia, percorremos alguns quilómetros até chegarmos a uma zona calma, as casas eram bem afastadas umas das outras, grandes e luxuosas. Paramos em frente a uma casa de dois andares, pintada de verde-claro, tinha um lindo jardim à frente.

Luís então anunciou:

- Chegámos, querida, aqui é o teu novo lar.

Descemos do carro, ele foi buscar as minhas coisas no porta-bagagens. Estava um dia bem ensolarado, a varanda era cheia de flores e plantas lindas, fui cheirando cada uma das flores. Encantou-me tanta beleza.

Enquanto tirava as coisas do carro, meu pai perguntou:                  

- Gostas do jardim?

Respondi apenas com um sorriso.

- O jardim é mesmo muito lindo, Ama gosta muito de flores, acho que vocês vão-se dar muito bem.

Novamente, apenas lhe sorri.                                       

Quando entramos vi uma mulher alta e muito bonita, que sorria para mim, devia ser Ama. Ao seu lado estava um rapaz que devia ter mais ou menos a minha idade, de cabelo bem curto e um bocado de barba, era alto e fisicamente forte, parecia muito zangado. Agarrado às pernas da mulher estava uma criança, que talvez estivesse envergonhada com a minha presença, era um rapazinho muito lindo e bem tímido, sempre que podia escondia a cara atrás da saia ás riscas que a mulher vestia e condizia com a blusa rosa e os sapatos brancos e de salto alto que também usava. Ela era mesmo muito elegante.

Meu pai então quebrou o silêncio, dizendo, enquanto apontava para mim:                                   

- Pessoal, a nossa estrelinha Olívia.

A mulher então se dirigiu a mim, envolveu-me num forte abraço e disse:                                                                        

- Seja muito bem-vinda querida, eu sou a Ama.

Segurando-me pelos braços ela me levou até onde estavam os rapazes e disse:                                                                              

- Este é o teu meio-irmão, Wilker.

Wilker então apertou a minha mão, mantendo sempre a pose de mauzão.                                           

Enquanto isso, Ama abaixou-se e, segurando a bochecha da criança, disse:                

- E este anjinho lindo aqui é o teu irmãozinho Juninho, ele é sempre assim, tão tímido o nosso pequeno.

De seguida Ama apresentou-me Joaquina, a empregada da família, que me pareceu bastante simpática. Ama ainda me mostrou toda a parte de baixo da casa e também a parte de cima, onde ficavam os quartos. Mostrou-me o quarto do Juninho e depois um quarto bem sombrio, era o quarto do Wilker. Seguimos depois até o quarto que ela dividia com o meu “novo” pai.

Por fim, Ama levou-me até aquele que seria o meu quarto, cheirava a tinta fresca. Quando lá chegamos ela disse:                                                                                   

- Aqui é o teu quarto, espero bem que gostes, tive pouco tempo para decidir como decorá-lo. Ademais, é um bocado difícil preparar um quarto para uma mocinha. Espero que gostes. Depois vamos ao shopping comprar algumas roupas para ti. Eu sempre quis ter uma menina, mas só tive rapazes. Quando o teu pai me disse que tinha uma filha e vinhas viver connosco fiquei muito feliz.                                                                                                                       

Ama então sugeriu:                                                                            

- É melhor descermos e ir ter com o pessoal.

- Posso ficar só um bocadinho a descansar? Desço já – disse eu.

- Podes ficar à vontade, querida. Tente não demorar porque já vamos almoçar - disse Ama.                           

Aproveitei o tempo para escrever em meu diário. Minha vida mudou drasticamente em um espaço de tempo muito curto, agora eu tinha tantas coisas para escrever.

Quando descia para almoçar, vi a família toda reunida, fiquei muito feliz. Eu agora tinha uma família, graças a Sander!

Depois do almoço, Ama levou-me a passear. A seguir fomos comprar roupas. Íamos ter uma tarde de meninas, ela disse.

As pessoas não tiravam os olhos de nós. Comentei acerca disso com Ama, que me disse que devia ser por causa da entrevista que eu dera, e que não devia me importar com isso, logo as pessoas se esqueceriam.

Disse-lhe então que não me sentia bem com isso e, brincando um pouco, ela sugeriu:

- Se não nos deixam ter uma tarde de meninas, levaremos o shopping para casa.

Voltamos então para casa e ela mandou vir muitas roupas, sapatos e acessórios. Passamos horas a experimentar roupas. 

Foi mesmo muito divertido, deu até para me esquecer um pouco dos problemas, Ama era bem engraçada. E tinha bom gosto.                                         

 À noite, jantamos todos juntos, menos Wilker, que tinha saído com os amigos. Ele era um tanto rebelde.

Luís informou-me que no dia seguinte iria procurar uma boa escola para me matricular.                                                          

E perguntou:

- Olívia, podes me dizer em qual nível académico é que estás? 

- Para tua informação, eu já sei ler e escrever, meu pai ensinou-me tudo, ele sempre me levava bons livros para ler.

- Ao menos disso aquele brutamontes não te privou – comentou Luís.

Fiquei muito zangada com ele! Limpei a boca, levantei-me e fui para o meu quarto. Não me agradava a forma como ele se referia ao meu pai, que, na verdade, era meu tio.

Fui-me deitar e pus-me logo a pensar em Sander, em como ele estaria agora, queria muito revê-lo, apesar de ser quase impossível. Eu era menor de idade, só poderia vê-lo quando completasse 18 anos.

Eu tinha que fazer alguma coisa para libertá-lo daquela maldição que o assombrava.

O Depoimento Da Avó

No dia seguinte, bem cedo, desci para tomar o pequeno-almoço. Wilker não estava lá novamente. Disse bom dia a todos e dei um beijinho no meu irmãozinho Juninho. Ama segurou minhas mãos e sorriu. O assunto à mesa era quando eu iria começar as aulas.

- Já consegui uma ótima escola para ti, é a mesma em que estuda o Wilker - disse o meu pai.

A Olívia vai-se dar bem na escola, ela é muito linda, vai arrasar os corações dos rapazes. A pele dessa miúda é tão reluzente. Eu na tua idade tinha a pele toda arruinada pela puberdade - disse Ama

Eu não gostei muito do comentário dela, não estava interessada em rapazes, a única coisa que eu queria era ajudar Sander, conseguir salvá-lo.

Não resisti e perguntei:

 - Quando é que poderei ver o Sander?

Fez-se silêncio total, Ama até se engasgou.                                               

Muito zangado, meu pai então ordenou:                                                                   

- Olívia, estás expressamente proibida de falar o nome desse rapaz nesta casa. Esta é uma casa de família. E estás a fazer medo ao teu irmão.           

Muito zangado ainda, acrescentou:                                                                               

– Tens de esquecê-lo.

Tentando acalmar-me, Ama acariciou o meu ombro.

Logo que terminamos o pequeno-almoço, Luís saiu para ir trabalhar. Pouco tempo depois Ama também saiu, aproveitando para levar Júnior à escola.

Logo que saíram fui espreitar à janela. Vi Wilker, estava com uns rapazes, fazendo brincadeiras de mau gosto contra um outro rapaz que passava pela rua.

Fiquei indignada, Joaquina também veio ver a cena, disse:                                                                                                    

- Eles são sempre assim, uns brutamontes. Wilker já foi um bom rapaz, mas desde que começou a andar com aquele grupo tornou-se um rebelde sem causa. Eles aprontam muito. Só vão à escola quando lhes apetece, conduzindo aquele carro a alta velocidade. São da mesma corja, todos filhinhos de papai e mamãe.

Decidi não perder mais tempo com aqueles rapazes e fui ajudar Joaquina a arrumar a casa, e ficamos a conversar. Gostava muito de fazer isso, ajudou-me a manter a cabeça ocupada.                                               

A televisão na sala estava sintonizada num canal de notícias, iam começar a falar sobre a vida de Sander. Deixei tudo o que estava a fazer e fui-me sentar para assistir.

Joaquina então abanou a cabeça, e saiu da sala. Alguns minutos depois o televisor apagou-se, tinha havido um corte de energia elétrica. Fui perguntar à Joaquina o que tinha acontecido e encontrei-a com o telefone na mão, presumi que ela tinha desligado a luz a mando de Luís.

Ela fingiu não saber de nada, mas dava para perceber que tinha desligado o telefone ao ouvir-me aproximar-se dela. Deixei-a na cozinha, fingi subir para o meu quarto, mas afinal abri a porta de casa e, sem fazer qualquer barulho, sai para a rua.

Fui de casa em casa, pedindo que me deixassem entrar para assistir ao noticiário na televisão, ninguém acedeu ao meu pedido.

Continuei andando até que vi uma casa, era pequena, e a mais humilde do bairro. Bati à porta e uma senhora abriu-a e, diante do meu insistente pedido, deixou-me entrar e ligou a televisão, até me trouxe um lanchinho.

Agradeci-lhe, dizendo:

 -Gostei muito do seu gesto, ainda bem que ainda existem pessoas que ajudam outras pessoas.

- Não tem de quê, menina – respondeu a senhora.                                                

Enquanto assistia à reportagem sobre o Sander o que mais me intrigou foi o depoimento da sua avó. Num dado momento, ela disse:

 - Naquela manhã de sábado fui ver como estava o meu neto, a pedido da minha filha que já não corria risco de vida. Chegando lá encontrei a porta aberta.

Quando entrei, achei tudo revirado, a professora do meu neto estava debruçada sobre a mesa. Cheguei perto dela, pus-lhe a mão sobre o ombro e nada.

Resolvi levantar-lhe a cabeça, para meu espanto ela estava morta e cheia de sangue. Fiquei perplexa. Chamei a Polícia. Entretanto, bati com o pé em alguma coisa que estava no chão, virei a cara e dei um grito. Do outro lado do telefone, os polícias faziam muitas perguntas: Quem fala? Fale ou desligamos! Por favor, quem fala?

Por fim, desligaram.

Tinha pisado no corpo da senhora que trabalhava com a minha filha, ela tinha um fio de telefone enrolado no pescoço, certamente morreu asfixiada.

Liguei outra vez para a Polícia, tinha perdido o fôlego, as palavras não me saíam da boca, sentia as mãos trémulas, mas consegui me recompor e disse:

- Estou perante uma emergência: Acabei de entrar na casa da minha filha, invadiram-na, encontrei tudo revirado e estão duas pessoas mortas na sala.

Perguntaram-me se não havia mais ninguém em casa. Deixei então o telemóvel em cima da mesa e fui ver se o meu neto estava bem. Arranquei o ferro que segura o candeeiro da sala e subi ao primeiro andar, onde ficam os quartos. Afinal, não sabia se os bandidos ainda estavam ali.                                           

Entrei no quarto do meu neto, ninguém estava lá. De seguida entrei no quarto da minha filha e lá também estava tudo revirado, e no seu ‘’closet” encontrei Fred num estado lastimável, parecia que alguém o tinha atirado contra os espelhos, várias vezes. Um horror, fiquei pasma, estava tudo cheio de sangue. Entrei então na casa de banho da minha filha e ali, finalmente, achei o meu neto, estava todo encolhido num canto, tremendo de frio. Quando ele me viu gritou bem alto: “Ajuda-me avó, a mãe está presa no espelho e o pai está dentro do telemóvel”. Eu não entendi, talvez o menino estivesse confuso por causa do que tinha acontecido. Disse-lhe então:

 - Tens que te acalmar, vai ficar tudo bem com a tua mãe. Ela estava em coma, mas já acordou. Está no hospital, em breve volta para casa. Teu pai não resistiu, morreu no momento.                                                             

Sander não quis aceitar que os pais tiveram um acidente e me disse: “Acredite em mim, avó. Venha ver, a mãe está presa no espelho”. E me arrastou para diante do espelho.                                          

Ele ficou em frente ao espelho e eu fiquei atrás dele com a mão sobre o seu ombro, ficamos ali por alguns minutos. De repente, reparei que as pupilas dos olhos do meu neto estavam maiores. Ele então colocou sobre a minha mão a sua mão pequena e suave que, no entanto, foi-se tornando pesada, parecia chumbo de tão pesada que ficou.

Depois ele se virou mecanicamente, segurou-me os pulsos com a força de um homem grande e empurrou-me com tanta força que caí dentro da banheira que estava cheia de água, e ainda tentou afogar-me, pressionando a minha cabeça para baixo. Engoli muita água e quando estava quase a perder os meus sinais vitais, ele finalmente me soltou. Debruçada sobre a banheira, fui recuperando o fôlego enquanto Sander se escondeu novamente debaixo do lavatório e observava-me assustado, encolhido a um canto.

A Polícia então chegou. Ao entrarem na casa de banho os agentes foram imediatamente em minha direção, tiraram-me da banheira e cobriram-me com uma toalha. Eu tossia muito, não consegui falar nada. 

Sem fôlego, apontei o dedo para o meu neto. Um deles entendeu que deveriam salvar o menino. Então sorriu-lhe e deu-lhe a mão.                                                            

Sander então se levantou e, aproveitando a distração do polícia, soltou-se da sua mão, correu até a janela e simplesmente pulou. 

Os policiais correram até a janela e viram Sander já de pé, correndo em direção à estrada, mesmo depois de ter pulado de um primeiro andar. Tentaram alcança-lo, mas ele já tinha desaparecido.

O depoimento da avó do Sander reforçou a minha ideia de que ele era apenas um fantoche na mão de um espírito maligno. Mais de que nunca tive a certeza de que tinha que o ajudar.

Quando a reportagem terminou agradeci à boa senhora pela hospitalidade e voltei para casa. Meu pai estava à porta, esperando por mim.

Muito zangado, perguntou-me:

- Por que saíste de casa sem avisar a Joaquina?

 Respondi-lhe então:

- Só sai porque ela me impediu de ver o noticiário na televisão, desligando a luz, e sei que ela fez isso em obediência a uma ordem tua.

Dei-lhe as costas e subi correndo para o meu quarto.

A Escola

No dia seguinte comecei as aulas. Eu já sabia que não ia ser um mar de rosas. Os meus colegas sempre cochichavam quando me viam. Eu era apenas a menina que fora sequestrada pelo próprio tio e criada em cativeiro e tinha como melhor amigo o “menino psicopata”. Nada que eu não esperasse. Os dias seguintes foram iguais. Eu não lhes ligava nenhuma, passava a maior parte do tempo na biblioteca a ler o máximo de livros que eu pudesse, e era uma boa aluna.

Frequentava a mesma escola em que estudava o meu meio irmão Wilker, ele era muito popular. Ele e os colegas sempre troçavam de mim, mas sempre na escola, parecia que era só para agradá-los, porque não fazia isso quando estávamos em casa. Não lhe agradava muito magoar-me.

Um dia fui abordada por um grupo de raparigas que me disse que tinham muita pena de mim e chamaram Sander assassino.

Eu já estava farta disso! Por isso subi num banco e gritei para que todos ouvissem:

- Sander é o meu melhor amigo. É um bom rapaz, mas teve a má sorte de ter em seu corpo um espírito maligno que o obriga a fazer mal às pessoas.                                              

Todos os que estavam no átrio riram-se de mim. Uma rapariga tocou-me e eu, com muita raiva, empurrei-a e a seguir gritei-lhe, dizendo que se levante para levar uma boa coça.

Wilker então se aproximou de mim, chamou-me aberração e disse que eu devia desaparecer da sua vida e que eu nunca faria parte da sua família.

Este episódio quase me rendeu uma expulsão. Meu pai foi buscar-me à escola e o diretor falou connosco acerca disso e ele pediu-lhe que tomasse medidas para que não me importunassem mais.

Eu não tinha nenhum amigo naquela escola. A única pessoa com quem eu podia falar era Lia, e sempre que tinha disponibilidade pedia ao pai para deixar-me ir visitá-la.

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